Dr. Mário Perrone
Socorro, invadiram meu consultório!
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Rondonópolis

Socorro! Invadiram meu consultório!

 

Lembro um professor de pediatria que dizia: o pediatra é o médico que não ganha muito dinheiro como o cirurgião plástico, mas sempre tem uns trocados no bolso, pois não passa dia sem que apareçam uns gatos pingados em seu consultório. Além dos aspectos científico e humanitário da especialidade, esta frase me animou. E lá fui eu ser pediatra na vida.

O professor tinha razão. Eu trabalhava muito, mas todos os dias havia uma compensação.  Bastava ter vontade e ficar no consultório que os pacientes apareciam e com eles vinha o pagamento digno e justo dos honorários. 

Não havia intermediários no meu relacionamento profissional com os clientes. Eu era realmente o dono do consultório, e, como dono, ditava as normas, os horários, os preços, os prazos. Quando eu decidia pedir um exame, bastava fazer a solicitação em um bloco de receituário e pronto. Quando um cliente precisava de uma hospitalização, eu fazia um telefonema e a prescrição. Tudo era resolvido sem burocracias  inúteis e justificativas antipáticas. Meu trabalho era cobrado de acordo com a complexidade do caso, sempre levando em conta as condições da família.

Os clientes eram meus clientes e o consultório, repito, era meu.

Se você, médico leitor, tem menos de 15 anos de profissão, vai achar que estou escrevendo um conto de ficção, ou que sou um grande mentiroso. Quando você se formou, eles já começaram a invadir meu espaço. Mas, curioso você perguntará: quem são eles? Leia a segunda parte desta conversa, sem dúvida alguma vai reconhecê-los. Vamos a ela:

O mundo mudou, o país mudou e, sobretudo, mudou a medicina. Começaram aos poucos. Propunham mais ou menos isto: Você, médico, nada entende de marketing. Nós, a partir de agora, vamos organizar tudo para você, seu idiota. Os clientes nos pagarão uma taxa mensal e nós deixaremos que você os atenda, desde que se comporte de acordo com as nossas regras. Nós é que determinaremos os preços da consulta e os horários que nos convierem. Como você é um incompetente, determinaremos quantas consultas seu cliente poderá fazer, assim como o intervalo permitido entre duas consultas. Também escolheremos o banco em que depositaremos sua pequena fortuna mensal. Se houver necessidade de  exame, por favor, justifique em três vias carimbadas, datadas, protocoladas e assinadas e espere a liberação que, se houver, pode levar de uma a oito semanas. Para hospitalizações, além das já citadas três vias, é preciso também um requerimento constando os motivos, o CID9 e o CID10, a possível medicação que deve ser usada, o CPF, RG, PIS/PASEP, e todas as combinações possíveis do alfabeto.

            Você já deve ter reconhecido os invasores de meu consultório: os planos de saúde.

Há vários tipos deles. Alguns pertencem a bancos que, cansados de ganhar muito dinheiro, prestam um serviço realmente caridoso, concedendo esta graça a seus usuários. Outros são de bem intencionados grupos de pessoas que também querem dar sua colaboração à humanidade, ajudando médicos a arrumar clientes. Há também os que se denominam cooperativas e oferecem a grande oportunidade de sermos donos, donos estes que trabalham muito para ganhar pouco, enquanto a marca fica como a  coca-cola dos planos de saúde com aviões, helicópteros e seguradoras. Mas, os mais bizarros são os pertencentes a empresas funerárias. Veja o paradoxo da situação: tenha assistência médica e morra garantido. Não há dúvidas, da maneira que as coisas andam, em breve teremos planos de saúde das Casas Pernambucanas, do Pão de Açúcar, do Atacadão e de todos que querem investir neste atraente e rendoso filão do mercado, ou seja, revender o nosso trabalho.

Mas, perguntarão os mais objetivos, se o senhor não está satisfeito com esta situação, por que não diz não a todos eles? A resposta é simples, meu consultório ficaria ao plano de saúde das moscas. Eu sou um simples pediatra e, humildemente, confesso que não posso com eles. Já fazem parte de nossa cultura e são muito poderosos. Hoje, é feio e socialmente inaceitável pagar consulta médica. Imaginem, em uma reunião social, alguém falar que pagou a consulta a determinado doutor. Será olhado com desdém, pois isto é coisa de pobre e de pessoas incultas que não têm um plano de saúde!

É preciso que toda a classe diga não a todos eles e que mostremos que se para enfrentar a crise é preciso adequar nossos preços, que o façamos  nós mesmos, não há necessidade de intermediários para tanto.

Aquele já citado professor diria hoje: O pediatra é o médico que sempre terá guias de consulta na gaveta, de todas as cores, tamanhos e formatos, mas, de pouco valor, é claro.

Que saudades de um consultório que era meu!

 

 

 

Rondonópolis, 25 de novembro de 1999.

 

 

Mário Perrone Pediatra

e-mail: marioperrone@terra.com.br

 

 

 

 

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